A pandemia do COVID-19 traz à tona diversos fantasmas da nossa vida social que estavam, por assim dizer, debaixo das cobertas.
Uma das dimensões desses fantasmas, na qual vivemos imersos, é a temporalidade. Temporalidade que se expressa nas nossas rotinas, através das quais alimentamos a falsa noção de que o tempo passa independentemente do que estejamos fazendo. Uma das consequências da pandemia, certamente uma novidade, é a possibilidade que temos hoje de observar, compreender e eventualmente modificar nossas vivências temporais. Claro que estou me referindo aos que puderam adotar as medidas de isolamento, e assim viverem essa experiência nova no manejo de seus tempos.
Aqui cabe uma primeira distinção entre os tempos sociais e o tempos individuais. Exemplifico: horários de trabalho e lazer nos tempos sociais, horários de alimentação e sono nos tempos individuais. Esses dois tempos estão intimamente associados, mas num tipo de associação que requer ajustes constantes – por exemplo, o significado da hora em um relógio muda completamente num final de semana, embora o relógio seja aparentemente o mesmo. Hoje, talvez, a compreensão de que a hora do dia é uma construção social se torna mais clara para nós.
Os ajustes entre esses dois tempos, o social e o individual, nem sempre são pacíficos, muitas vezes constituem cenários de diversos sofrimentos, como é o caso mais evidente de distúrbios do ciclo vigília/sono, cada vez mais frequentes na nossa sociedade. A temporalidade do isolamento traz boa parte dos tempos sociais para a vida doméstica mas nem por isso os torna menos sociais, o que ocorre é a diminuição da distância entre o tempo social e o individual. Nossa rotina passa a ser cada vez mais nitidamente construída pelas nossas opções e assim, vamos nos dando conta do nosso papel de arquitetos do próprio tempo. Prestamos mais atenção aos nossos ritmos, o sono e a vigília se revelam claramente como fases de um ciclo que requer cuidados, a alimentação depende muito do nosso acesso à comida, e assim por diante – as pontas dos icebergs da nossa existência emergem mais nitidamente. Mas o que muda essencialmente é o nosso papel, agora mais ativo, na construção dessas rotinas.
A novidade do nosso papel ativo na construção das nossas temporalidades não é assim tão nova, o que me parece é que sempre esteve presente mas abaixo da superfície, algo que fazemos mais ou menos automaticamente. Justificamos nossas temporalidades pelos compromissos sociais quase como “vítimas” de imposições de rotinas. É um tempo “em si” que ao se manifestar agora, perde essa característica aparentemente essencial para se tonar algo concebido e manipulado por nossas vontades e desejos. Evidentemente essa situação convida a assumirmos, tanto individual como socialmente, projetos e sonhos de novos tempos.
As coisas e os seres vivos tendem a mudar nas crises, quando junto com caminhos que se fecham, abrem-se novas possibilidades. Tenho ouvido relatos esparsos de sonhos, acompanhados de impressões do tipo “agora estou sonhando mais do que antes da pandemia”. Acho que isso é bem provável, talvez mais tempo para dedicar aos momentos de transição entre o sono e a vigília, estejam compondo cenário para esses momentos de invasão das realidades por sonhos, lusco-fuscos das consciências. Einstein reclamava muito ao ser acordado antes desses momentos, que ele considerava como os mais criativos, quando suas relatividades sonhadas começavam a aparecer como equações. Sonhemos, pois.
Luiz Menna-Barreto
Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH/USP)
Mestre e doutor em Ciências (Fisiologia Humana) pela USP, Pós-Doutorado na Université de Franche-Comté, França. Livre-Docente pela USP (2008) e Titular (2009). Professor aposentado atuando na categoria Sênior na EACH/USP. Atua em temas como: Cronobiologia, Ciclo Vigilia/Sono, Adolescentes, Sono, Humano, Ritmo Biológico, Filosofia da Ciência entre outros. Conferencista do Congresso Internacional Online de Estudos sobre Culturas do CLAEC nas edições 2019 (Um espaço para o tempo na leitura dos corpos) e 2020 (Vivendo os tempos da pandemia).
Foto: Mural de Francesco Camillo Giorgino (Millo)